A era do CD, que parece encaminhar-se para o seu final, foi bem mais curta que a do vinil. Foram cerca de vinte anos de dominação dos biscoitinhos contra mais de setenta dos bolachões. Ainda assim, a era do CD teve seus benefícios. Gravadoras e artistas puderam faturar de novo com produtos que já tinham vendido antes. Fãs de música puderam readquirir seus discos favoritos em um formato que prometia maior fidelidade sonora (isso ainda é motivo de disputa entre fãs de vinil e aqueles que se acostumaram com o som digital).Essa, quero crer, foi a maior vantagem da era do CD para o melômano: a reedição de discos que estavam há muito tempo fora de catálogo. Acervos inteiros foram recuperados, remasterizados (para o bem ou para o mal), minuciosamente analisados (as reedições em CD costumavam vir acompanhadas de pequenos ensaios sobre a música e/ou sobre o artista) e lançados novamente no mercado.A mudança do formato no qual se vende música tem efeitos profundos sobre o mercado e sobre o consumidor, alterando a forma como consumimos e como percebemos a produção musical contemporânea. Uma das possíveis conseqüências da substituição do CD pelos mp.3 é a pulverização do gosto musical, isto é, o público consumidor pode se interessar mais por canções isoladas do que por um conjunto de canções que foram lançadas em um mesmo álbum. Na época dos discos de vinil, quem quisesse comprar uma só faixa de um determinado artista levaria para casa um compacto simples ou um compacto duplo (duas faixas de cada lado do disco). Com a chegada dos CDs no mercado brasileiro, as gravadoras praticamente extinguiram os compactos, obrigando os consumidores a comprar os álbuns, fossem eles coletâneas de hits ou não.No início dos anos 90, boa parte dos artistas pop se viu obrigada a lançar álbuns de carreira com mais de 60 minutos de música porque, segundo as gravadoras, era esse o desejo dos compradores de CDs: adquirir discos "cheios" de música. Nunca houve tanto "filler", tantas canções dispensáveis nos discos como nesta época, uma prova de que o formato do produto musical afeta e muito o resultado artístico.A despeito das desvantagens do CD que os fãs do vinil gostavam tanto de divulgar, os disquinhos digitais ainda conservam a identidade do álbum musical enquanto peça artística única, enquanto "declaração" estética, comercial e existencial de um determinado artista ou grupo de pessoas. Da arte de capa à música, a concepção de álbum musical não sofreu mudanças radicais com o fim dos LPs e a chegada dos CDs – OK, o tamanho das capas foi reduzido (essa sempre foi uma das maiores críticas dos fãs do velho vinil ao CD). Com a disponibilidade de faixas isoladas na rede, não há mais porque comprar um CD que tem quinze faixas só por causa de duas ou três. O fim da era do CD pode marcar também o fim da predominância dos álbuns no mercado de música pop e o retorno triunfante dos singles.O surgimento dos gravadores de CD domésticos provocou o primeiro abalo na indústria fonográfica. As cópias, que tinham fidelidade sonora igual ou muito próxima à do CD original, começaram a proliferar. A troca de arquivos pela internet acelerou o processo de sucateamento do CD enquanto produto forte da indústria musical. O surgimento do DVD, que oferece ao consumidor imagem digital e som em 5.1 e cujo preço é quase equivalente ao do CD, foi outro golpe duro para a mídia digital de áudio. A política atual das gravadoras é: toda força para os DVDs. Os CDs ainda são lançados, mas em tiragens cada vez menores.Empiricamente, percebo que a compra de CDs ainda é forte entre pessoas habituadas a consumir música em formato de álbum, isto é, pessoas com vinte e cinco anos ou mais, que (teoricamente) tem maior poder aquisitivo para adquirir produtos culturais. Imagino que as gravadoras já tenham conduzido suas pesquisas de mercado sobre o assunto, mas não vi resultados divulgados pela imprensa. De todo modo, só no futuro saberemos se os CDs ainda vão continuar a ser produzidos, ainda que em pequena escala e para um tipo específico de consumidor (o colecionador).Os discos que saíram por aqui e os que faltaramPara o fã de soul music brasileiro que quer colecionar discos (será que alguém tem idéia de quantos existem?), a aquisição de algumas edições em CD se faz obrigatória. O fã de soul não pode desconsiderar edições como, por exemplo, as três caixas de CDs que reúnem os singles da gravadora Stax lançados entre 1959 e 1975. As caixas têm um total de vinte e oito CDs que registram magistralmente a história da gravadora de Memphis (vários lados B dos singles foram deixados de fora por uma questão de concisão; se fossem incluídos, as caixas teriam mais de 40 CDs, o que poderia inviabilizar o projeto).Imaginem agora tentar encontrar todas essas canções em seus respectivos compactos de vinil. Seria uma tarefa no mínimo exaustiva e dispendiosa (alguns compactos raros podem custar o preço de um carro usado!), no máximo impossível. No entanto, estão todos nessas três belas embalagens coloridas, e ainda vêm acompanhados de três livros com fotos raras, fichas técnicas completas das gravações e ensaios alentados sobre a história da Stax, escritos pelo expert Rob Bowman.Claro que essas edições de luxo da Stax não tiveram edição nacional (infelizmente), embora tenham aparecido por meio de importadoras (foi como adquiri as minhas). O que o fã brasileiro de soul music pode achar da Stax em edição nacional durante a era do CD? Pouca coisa: dois discos do Isaac Hayes (a trilha do Shaft e uma coletânea de singles), um álbum original da dupla Sam & Dave (Soul Men), um álbum da Carla Thomas (The Queen Alone), alguns discos do Otis Redding (todos póstumos: The Dock Of The Bay, Tell The Truth e Remember Me, mais um par de coletâneas).O que mais? O primeiro disco dos Bar-kays (Soul Finger, único com a formação original do grupo - vários membros desta formação morreram no acidente de avião que vitimou Otis Redding) e as coletâneas Top Of The Stax 1 & 2, dois CDs com quarenta faixas no total. Esse conjunto de discos até resume a história da gravadora, mas a Stax tem muito mais a oferecer ao fã e mesmo ao ouvinte casual. Não tivemos relançados no Brasil os excelentes discos que Johnny Taylor, Staple Singers, Booker T. & The M.G.'S, Eddie Floyd, William Bell e Dramatics gravaram para a Stax nos anos 60 e 70.Al Green? Da fase de ouro dele com o Willie Mitchell (os anos 70), só foi lançado no Brasil o álbum Let's Stay Together (isso porque o disco contém a versão que ele fez para “How Can You Mend A Broken Heart”, dos Bee Gees, que fazia sucesso porque estava em trilha de filme). Ficamos sem Call Me, Al Green Explores Your Mind (meu favorito), Al Green Is Love e The Belle Album, entre outros discos antológicos do reverendo. Nem mesmo o primeiro Greatest Hits do Al Green, universalmente reconhecido pela crítica como disco essencial, saiu no Brasil.Motown? Bem, aí a coisa melhora um pouco. Tivemos, em 1993, o lançamento de vários (não todos) títulos da série Anthology, CDs duplos dedicados aos principais artistas da gravadora: Temptations, Four Tops, Marvin Gaye, Supremes, Gladys Knight & The Pips, Jackson Five, Diana Ross (solo) e Michael Jackson (solo). Desta série faltaram aparecer por aqui os volumes dedicados às Marvelettes, a Martha Reeves & Vandellas, ao Junior Walker e ao Stevie Wonder. Este último teve seus discos dos anos 70 e 80 editados por aqui uma só vez (o Songs In The Key Of Life teve duas edições, nenhuma delas a remasterizada).O Marvin Gaye, por sua vez, teve lançados em CD no Brasil alguns discos de carreira como I Heard It Through The Grapevine, o obrigatório What's Going On (que já teve várias edições nacionais), Diana & Marvin (com Diana Ross) e o disco ao vivo gravado em Londres (não é o melhor ao vivo dele, diga-se). Foram negligenciados CDs fundamentais do Marvin como United (gravado com Tammi Terrell), MPG, Let's Get It On, I Want You e Here My Dear.De quais outros lançamentos brasileiros de soul em CD eu lembro agora (estou tirando tudo da cachola, não estou consultando Google ou sites de lojas de discos): teve a bela (porém curta) série Rhythm & Soul, da Sony, que disponibilizou títulos importantes como Backstabbers, disco de carreira dos O’Jays, obra-prima do som da Philadelphia. Esta mesma série lançou coletâneas de Deniece Williams, Earth, Wind & Fire, Cheryl Lynn, MFSB (a orquestra que fazia todas as bases instrumentais para o selo Philadelphia International também lançava discos), Manhattans, Emotions, Aretha (fase pré-Atlantic) e mais alguns outros.Há dois ou três anos a Sony colocou no mercado brasileiro dois discos de carreira de Sly & The Family Stone, os indispensáveis There’s A Riot Goin’ On (a edição com a capa adulterada, infelizmente) e Fresh. Porém, para desgosto de quem gosta da música do Sly & The Family Stone, a Sony não produziu edições nacionais dos demais discos originais do grupo – nem mesmo a obra-prima Stand! saiu por aqui. Como prêmio de consolação, tivemos a edição da série The Essential dedicado ao Sly, um CD duplo, com excelente qualidade de som, que faz um belo resumo da obra musical do maluco beleza do funk.Não há espaço suficiente para fazer uma lista completa dos discos clássicos de soul que não foram lançados no Brasil de 1988, início do "boom" do CD no Brasil, até hoje. Faltou critério e bom senso às pessoas (os executivos das majors) que decidiram o que disponibilizar e o que deixar de fora.Continuando a usar Motown como exemplo: tivemos uma dezena de coletâneas dos Commodores, algumas excelentes (Ultimate Collection, a melhor coletânea do grupo, saiu há pouco por aqui), outras pouco representativas, à nossa disposição, mas nenhum disco de carreira do grupo (o primeiro, que tem “Machine Gun”, é um grande disco de soul e funk). Para quem queria conhecer soul music a fundo, a oferta foi bem menor do que a demanda, infelizmente.Com as gravadoras priorizando cada vez mais os lançamentos em DVD, será que ainda veremos em CD alguns títulos importantes? Em 2006 a Universal Music editou no mercado nacional dois discos fundamentais do James Brown, Sex Machine e o antológico Live At The Apollo (1962). Acredito que neste ano, talvez no próximo, ainda consigamos encontrar mais alguns discos clássicos de soul em CD no Brasil, mas os lançamentos serão mais escassos que onormal, creio. Espero que, com o surgimento das lojas virtuais, os acervos que não foram disponibilizados em CD ressurjam em mp.3 ou m4a ou qualquer outro formato digital.A história da soul music não pode ficar fora da dieta musical do brasileiro por mais tempo. É um repertório que merece ser conhecido e divulgado não só pelo valor histórico e cultural, mas por sua capacidade permanente de refletir nossos sentimentos e conflitos mais profundos.Zeca azevedo, 43, é o maior conhecedor de soul music do lado Sul do país - e não come mosca.
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